OUTRA SÉRIE - ORDEM HANTER

17/12/2014 01:12

Capítulo 01

 

Era noite. Uma pequena garoa caia sobre o vilarejo e deixava todas as ruas e plantações com uma leve neblina e um ar nebuloso. Um jovem ferido e desmaiado foi encontrado próximo a um galpão por alguns artesões que recolhiam a palha ainda espalhada do dia farto de trabalho. O jovem aparentava não ter mais que seus vinte anos, um homem para àquela sociedade, mas para mim, apenas um pequeno infante que eu sentia que tratava-se de mais um pequeno incomodo na minha estadia naquela região. Já fazem duas gerações que utilizo essas pessoas como minha barreira contra esse clã maldito do qual um dia chamei de meu, e aquele garoto, por mais que eu não saiba a razão, me fez lembrar deles no exato momento que senti seu cheiro. O cheiro de sangue amaldiçoado por aqueles iguais a mim, um sangue antigo.

Pela manhã

– Senhora, ele acordou – o jovem Eliot chegou ofegante a senhora Matilda, uma robusta senhora que impunha respeito em todos os cidadãos da pequena vila de Tempo Largo, sendo considerada a matriarca de lá, uma vez que só ela havia gerado 15 filhos e destes, 5 tornaram-se grandes membros de destaque da vila.

– Rápido Genaide, se o jovem acordou, quero saber o que o trouxe a essa tão distante vila. Quero saber notícias lá de fora! – a Sra. Matilda recolheu seus pertences que exibia a Genaide, uma moça recém florida para o mundo, ainda cheirando a leite mas que deveria conseguir logo um marido para ela, e com certeza seria um dos tantos netos da Sra. Matilda.

As duas logo empacotaram tudo e foram rapidamente, seguindo o jovem Eliot até a enfermaria ver como o jovem estava. Algumas pessoas já se acomodavam na porta, formando uma multidão, levando-se em conta a quantidade de moradores da vila Tempo Largo. Sra. Matilda chegou imponentemente afastando aqueles aos quais ela sabia que não passavam de curiosos e avistou seu neto, o jovem Tristan, sentado do lado de fora da enfermaria, com os pés na soleira da porta impedindo a entrada de qualquer um que a forçasse.

A Sra. Matilda percebe o neto e rapidamente coloca Genaide na sua frente, a empurrando sobre o garoto, que desajeitado quase cai da cadeira da qual se equilibrava, seja pelo modo brusco que identificou sua avó ou pela beleza que Genaide o presenteou com uma feição envergonhada e sorridente.

– Vamos garoto, me deixe passar, quero logo falar com esse rapaz – falando isso ela esparra em Tristan que cai e é ajudado por Genaide a levantar. Sra. Matilda entra na enfermaria e vê o jovem tomando uma infusão de ervas com um forte cheiro de hortelã e algo adocicado. Ele a olha com uma certa admiração e para sua infusão na metade, descansando seu copo sobre o criado mudo e se ajeitando ao perceber que todos abrem espaço para ela.

O rapaz abre a boca para falar algo mas as palavras não saem, ele fica olhando confuso para a Sra. Matilda, olha a todos em volta, mas mais uma vez ele nada diz.

Interessada no que ele tinha a falar, Sra. Matilda o interpõe:

– Vamos meu rapaz, me diga algo, o que aconteceu para você aparecer aqui nesse local, o que houve com você? E como está a cidade grande?

O rapaz nada disse, engole cada respiração fortemente e se encolhe na cama. Impaciente com a situação, ela então se aproxima dele e segura nos seus ombros, o chacoalhando e perguntando sobre os grandes transportes não mais puxados por cavalos, como eles consegue se locomover, ou pelos pontos brilhantes de fogo que são gerados instantaneamente sem ninguém o atear sobre a superfície.

 A curandeira então se aproxima e interrompe a Sra. Matilda:

– Senhora, o jovem senhor não se lembra de nada que aconteceu com ele, por isso estamos dando essa infusão de hortelã e canabis para ativar suas memórias, achamos que a pancada na cabeça o tenha afetado de alguma forma, mas deve retornar em dias suas memórias, vamos lhe dar um pouco de tempo.

Um pouco ruborizada a curandeira baixa a cabeça e espera pela resposta da senhora, que a encara com olhos fulminantes, mas sucumbe a explicação e sai da enfermaria, puxando Genaide para que caminhe com ela, deixando Tristan no vácuo.

Sra. Matilda deixa um silêncio constrangedor ao sair da enfermaria, sendo quebrado pelo jovem Eliot, que se aproxima do desconhecido e murmura:

– A Sra. Matilda parece uma megera, na realidade as vezes ela é mesmo, mas ainda assim, ela é muito gentil com quem a ajuda. Se você tiver notícias lá de fora, ela ficará muito feliz em saber – diz Elito sorrindo para o jovem senhor – ah, já ia esquecendo, meu nome é Eliot. Você lembra o seu?

– Vamos Eliot, não incomode o moço, vá cheirar as saias da sua senhora. Deixe ele em paz, e você rapaz, beba essa infusão, não quero que ela perca o efeito – O paciente logo pega o copo e observando toda a loucura daquela situação sorri um pouco, o fazendo sentir-se um pouco em casa.

No final da tarde o moço recebe alta da enfermaria mas não tem para onde ir, então o senhor da taberna, o gordo Beltido o oferece um aposento em troca de ajuda na limpeza das mesas e ao servir os clientes, sendo rapidamente aceito pelo moço.

A noite cai e o rapaz se mostra muito prestativo e rápido em ser serviço, recebendo muitas gorjetas pela simpatia que tanto lhe saltava da face. A noite foi calma e muitas histórias foram contadas, desde o incêndio do galpão de feno até as pequenas picuinhas de casais que sempre aconteciam quando, por exemplo o senhor Lorath passava dos limites e sua mulher, a senhora Julia o vinha buscar pelas golas, o arrastando por todo o caminho como um ladrão escoltado pelos guardas.

Dias se passaram e o jovem moço, ao qual começaram a chamar de Tom, uma vez que ele não lembrava seu nome, era incomodado pela senhora Matilda e insistentemente interrogado sobre suas lembranças do mundo lá fora. Em uma de suas investidas a Sra. Matilda não esperava pela resposta/pergunta de Tom:

– Se a senhora deseja tanto saber sobre essas máquinas, porque não vai a senhora mesmo ao encontro delas. A cidade não deve ficar tão longe, já que aqui estou eu – dizendo isso ele lançou sobre a mesa o pano no qual vinha limpando toda a taberna e se retirou ao seu aposento, só retornando quando ela havia saído.

– Pode acreditar senhor Beltido, faria de tudo para me lembrar das coisas da cidade para parar de ser importunado por essa velha rabugenta.

– Cuidado jovem, essa velha rabugenta por mais chata que seja, e eu concordo com você, ainda se trata da minha tia-avó. Aqui na vila é raro encontrar alguém que não tenha parentesco com essa velha gagá – Diz o gordo Beltido segundando sua pança e rindo sobre o comentário do Tom, esfregando sua cabeça ao passar por ele – A esqueça, é mais fácil, todos fazemos isso.

Quase uma semana se passou e pouco se mudou sobre o estado de “memória” de Tom. A curandeira diariamente o dava infusões e os mais diferentes compostos para o “curar”, mas nada estava adiantando, como se nenhum deles fizesse efeito no Tom.

Mais uma noite já estava por finalizar e lá estava Tom trabalhando na Taberna Sol Rachado, servindo as mesas com sua gentileza transbordante até que um senhor se levanta e o olha intensamente. Ele o encara por longos segundos e o empurra com toda a força, fazendo Tom bater sobre uma mesa e cair no chão.

Ele é ajudado por um jovem de cheiro familiar, mas que ele não consegue identificar, deve tratar-se de um dos clientes que se perfuma muito para encontrar com alguma dama, ele não faz muita referência em guardar, vista a confusão.

O senhor pega uma cadeira e segura sobre a cabeça, bufando: – Essa sua gentileza já está me enjoando, sempre rindo para todos, como se o mundo fosse perfeito. Você nem ao menos sabe quem é! – E lança a cadeira sobre Tom e o rapaz que o ajudou a levantar. Os dois se separam e a cadeira de quebra sobre a mesa.

A Taberna estava quase vazia, mas as poucas pessoas que estavam presentes, inclusive o gordo Beltido correm para cima do homem, que é facilmente contido pela força dele e de mais dois outros senhores que se encontravam no local.

Tom então se levanta e começa a limpar as mesas com bebidas não terminadas e tentando retirar os pedaços da cadeira quebrada. O rapaz que o ajudou a levantar se aproxima e oferece ajuda no primeiro momento, mas acaba cedendo. Tom se desculpa sobre o acontecido e quando o gordo Beltido retorna, pede desculpas por importunar tão fortemente um dos clientes.

O gordo Beltido explica que o filho do senhor Torin foi assassinado por um animal brutalmente pouco antes de Tom chegar à vila, tendo seu pescoço dilacerado de uma ponta a outra, e isso o deixou muito debilitado, uma vez que Tom lembrava seu filho em alguns traços, como a felicidade de viver a vida e de estar noivo de uma das mais belas damas da cidade, a lady Roberta.

O rapaz que estava ajudando Tom o entrega alguns cacos de vidros e os dois conversam um pouco sobre a relação que o Sr. Torin e seu filho tinham e Tom fica feliz em finalmente ter conhecido alguém de sua faixa etária e ter se dado bem, o jovem Pedro.

Pedro chama Tom para sair no dia seguinte, haverá uma feira na praça principal e todos iram ver os quinquilharias que os visitantes sempre trazem. Na manhã seguinte, ao acordar Tom vai logo se arrumar e quando o sol ainda está baixo, já fica na porta da Taberna a espera de Pedro.

Não demora muito e ele aparece, vestido um longo sobretudo marrom, com babados nas mangas, deixando com um ar de muito antigo. Algumas carruagens começam a passar pela taverna em direção a praça principal, e nela Tom consegue ver muitas roupas, alguns atores vestidos como figuras antigas e partes de fantasias como cabeças, pés de animais, rabos e outras tantas coisas estranhas penduradas por elas. Uma das ultimas carruagens que passam, traz uma lona cheia de estrelas e longos gravetos, que devem ser usados para criar algum tipo de tenda.

A vila está em euforia antes mesmo do sol está a pino, com crianças correndo dos atores/viajantes vestidos nas mais fantasiosas criaturas, muitas mulheres visitando barracas de roupas e um grande número de homens tentando desafiar uma senhora barbada que segurava uma espada e facilmente derrotava todos os seus oponentes.

As toras e a lona da ultima carruagem serviram realmente para abrigar uma tenda, uma tenda que prometia ver o passado e futuro de todas as pessoas da vila, fazendo muitas saírem de lá impressionadas com o que ouviam. Muitas riam, algumas poucas saiam chorando, mas todos pareciam bem satisfeitos com a “feiticeira” que lá se instalava.

– Vamos lá Tom, queria saber sobre meu futuro, será que conseguirei me casar com a bela Roberta, agora que o paspalho do Arthur morreu – Pedro diz sorridente seguindo até a tenda, com Tom acompanhando em seu encalço.

– Acho que vai ser bom mesmo, tomara que ela me revele algo sobre meu passado, assim posso calar a boca da Senhora Matilda – diz Tom com um sorriso maroto.

– Entrem meus jovens – diz uma voz rouca e bela de dentro da tenda, assim que um grupo de garotas saem sorrindo e olhando as suas mãos como se fosse tesouros recém descobertos – Sintam-se a vontade sobre o teto da Madame Olivar.

Ao entrarem na tenda eles avistam fumaça por todos os lados, cheiro forte de mirra, sândalo e outras fortes especiarias que deixam seus narizes um pouco incomodados. No centro da tenda há uma grande viga de madeira e ao seu redor uma grande mesa foi colocada, envolvendo toda a viga. A Madame Olivar encontra-se sentada no outro lado e há dois lugares na ponta oposta. Os garotos sentam.

– Então, vocês vieram aqui para aprender um pouco mais sobre seu futuro não? Vejamos, sinto que um de vocês está desejando uma pequena infante, mas espere. Hummm... – ela coloca suas mãos sobre a tábua e solicita que os dois coloquem também, e assim é feito.

Alguns momentos passam e então ela abre seus olhos, não mais negros e penetrantes como haviam se mostrado, mas branco, de uma pureza extrema e trazendo ao seu rosto uma expressão de porcelana, facilmente quebrada por um deslize. Sua voz soa mais fantasmagórica, como um sussurrar de uma forte brisa entre altas árvores de carvalho antigo.

Você, descendente da fada, deve elevar seu julgamento e tomar cuidado com o que te cerca, ele é mais forte que você e não hesitará em tomar aquilo do qual não terás como recuperar, não neste receptáculo. Tome para você esse fado e jaza sobre suas escolhas, mas siga sempre adiante, em um deslize final, você será premiado – sua voz sai enérgica e confiante e então vacila e a Madame Olivar desmaia, deixando os dois garotos espantados e sem ação.

Eles correm para longe da tenda, deixando para trás uma senhora no chão, mas levando com eles uma forte e aterrorizante lembrança que o tempo possivelmente jamais apagará.

Os rapazes correm pela feira e se chocam com o senhor Beltido, que está carregando uma carroça cheia de mantimentos e algumas bebidas exóticas. Os dois caem no chão e Tom bate no chão a cabeça, fazendo um filete de sangue escorrer por entre sua orelha esquerda. A pancada o faz ficar tonto e Pedro estende a mão para ajudar Tom novamente a se levantar. Um forte odor sobe deste, e rápidos flashes ocorrem na cabeça de Tom.

Seu nome não é Tom e sim Yam, ele não é somente um viajante e esquecido ajudante de Taverna, ele é descendente de uma linhagem muito antiga do sangue Le Fay, um sangue abençoado para caçar e matar os caminhantes da noite, aqueles que servem somente ao mal e a desordem, amam a destruição e não medem custos para conseguir o que desejam. Ele é Yam Monterger, aprendiz de caçador e abençoado pela sua antepassada na destruição dessas almas inférteis, na destruição de VAMPIROS.

O doce odor que Pedro exala o entrega facilmente. Mas se ele exala um cheiro tão forte e tão doce, ele deve ser um dos antigos membros do clã Tremblay, ele deve ser um dos grandes decepadores do século passado, mas como ele se escondeu por tanto tempo, como ele não foi caçado e dizimado como todos os outros?

Ainda com a mão estendida Pedro percebe a mudança de olhar de Tom para ele e retira sua oferta, se tornando austero e imponente, bem mais que a senhora Matilda. Ele o olha com desprezo no olhar e um sorriso de canto de boca que faz Yam sentir sua alma arrepiar.

– Então você recuperou sua memória jovem Hanter? – Ele o encarava clinicamente e o senhor Beltido não entendia o que estava acontecendo com Pedro que não ajudava Tom a levantar, ou Tom de não ter aceitado a ajuda que lhe foi oferecida.

– Vamos garotos, parem com isso, o que aconteceu com vocês? – Ele falou largando o carrinho e se dirigindo para próximo de Tom o levantando. – O que diabos é esse Hanter que você falou Pedro? – Ele olhou confuso para Tom – Você sabe garoto?

– Cala a boca velho idiota, a conversa é entre um nascido na noite e um Hanter, humanos imundos como você não são bem vindos. – E Pedro chega próximo ao senhor Beltido, coloca sua mão sob seu ombro e o joga a metros de distância, o fazendo cair sobre um grupo de atores que estavam encenando um ataque de um dragão a um castelo antigo para impedir que a princesa fosse resgatada.

Todos da feira de repente param e olham petrificados para àquela cena. Yam olha para todos os lados e enfrenta Pedro:

– Se você sabe quem eu sou, porque esperou até agora para se revelar, sua abominação, o que você fez a este velho homem. Ele nada fez contra você. – Ele fala se levantando e limpando de suas roupas a poeira e limpando seu pescoço do sangue que escorria.

– A jovem Hanter, vejo que você ainda teria muito a aprender, mas não seria eu que lhe daria essas lições. Infelizmente foi um erro a você chegar até aqui, desprotegido, isolado e sem armas. – Ele vai se aproximando de Yam até que eles encostam suas testas, ficando olhos nos olhos. Yam nada consegue fazer, paralisado com o antigo vampiro.

– Você é um Tremblay, cer... certo? – Ele fala com pouca convicção na voz.

– Hum, pelo menos meu nome você saberá. O ultimo nome que você conhecerá a quem pertence. – Pedro rir. A risada fria e sarcástica que ele lança faz mais uma vez os ossos de Yam gelarem intensamente. Pedro retoma o ar austero e começa a caminhar, circulando Yam, e falando manso a cada novo passo.

– Veja garoto, você não foi de um desperdício total para minha companhia, mas acho que já chegou a hora de acabar com essa conversa inútil e sem sentido. Sabia desde o primeiro momento que você era um Hanter, que estava aqui para me caçar, mas não entendo como isso possa acontecer, já que eu me escondi muito bem, até para seu grupo de fadinhas me encontrarem, mas já que fizeram, que eles sintam o peso da primeira perca sob meus pés, e fico orgulhoso de ser uma perca tão interessante. – Durante alguns segundo ele encara novamente o garoto e para, analisando e degustando cada gota de suor que jorra do semblante do jovem caçador.

Apreciando cada palavra dita, como um delicioso banquete, ele fala:

– Um alto membro da família Le Fay. Sinto o sangue de Morgaine por suas veias e ficarei muito feliz degustar dele de uma fonte tão pura. E para que não digam que eu não fui gentil com você, contarei quem realmente te bebeu. Não foi nenhum Pedro, esse não existe, mas sim o grande Orfeu Tremblay, aquele que derrubou toda a antiga Ordem dos Hanters e implodiu o clã Tremblay matando seu incompetente mestre.

E antes que Yam pudesse sentir o peso das palavras que Orfeu lançou sobre ele, antes que ele pudesse expressar qualquer reação, antes que sua respiração pudesse retornar aos pulmões, ele sentiu o pesar das mãos de Orfeu, sentiu o cheiro mais doce que sua vida jamais o proporcionou e sentiu lâminas gélidas, afiadas e precisas perfurarem seus vasos e drenarem seu líquido outrora tão quente.

A ultima coisa que um dos últimos herdeiros da família Le Fay escutou foi o grito ensurdecedor de uma pequena multidão correndo a esmo e a batida de seu próprio coração.